todos os que temos por costume
passar grande parte
de nossas noites
sentados à mesa
só muita conversa ou silêncio
ou café
ou mesmo uísque e gelo nos copos
e tanta fumaça
na cozinha da casa de Valéria...
Um dia nós todos
vamos descobrir
sim, descobriremos
uma talvez já velha descoberta
como esta:
de que a cozinha de uma casa
por mais espaçosa que sempre
é sempre pequena
para o tamanho do sonho
que sonhamos.
Um dia, nós
que temos por costume
transformar a sala da casa da Valéria
em ponto de encontro
ou de espera
ou mesmo uma sala de redação
de um jornal que fazemos.
Todos os que gostamos
de ali ficar
assim pelos cantos
esparramados
muito ligados
ou desligados
vendo fotografias
lendo poemas
ouvindo discos do Chico,
do Caetano, da Bethânia
e discutindo em voz alta
ou mesmo calados
pensamentos
parecendo grande demais...
Um dia, nós todos
que tudo isso
ou nada fazemos
perceberemos talvez
de repente
ou lentamente
que a sala de uma casa
por mais espaçosa
ou acolhedora que seja
é sempre pequena
para o tamanho
da dúvida
que trazemos.
Um dia, nós
que temos por costume
caçar conversas
com as curvas de um rio
que não existe
de abrir a janela
para um sol e uma rua
que também não existem
deixaremos todos
um a um
ou dois a dois, quem sabe
deixaremos todos
a cozinha e a sala
da casa da Valéria
e nos lançaremos
à procura
da curva do rio que não existe
na busca
do nosso maior sonho
sonhado na noite
que em nós trazemos perdida
uma busca
que já sabemos inútil
mas necessária.
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E Valéria sorrindo
assistirá a nossa partida
sorriso de quem já foi
procurou
e nada achou
sorriso de quem previa nossa volta.
E Valéria tranquila
assistirá nossa partida
e não trancará a porta da casa
nossa vontade de seguir
talvez não ultrapasse a próxima esquina.
Que esquina?
Clara
03 de abril de 1973
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