domingo, março 25, 2018

Céu e inferno riscados de giz

Um jogo consumiu horas da minha meninice, o Maré ou Amarelinha, na rua em frente da casa dos meus avó, pátios de escolas e ruas das cidades onde morei em Minas e no Paraná. Sempre me chamou a atenção o nome. Trata-se de um jogo muito antigo, espalhado pelo mundo inteiro com denominações diferentes.
Na Idade Média, as pessoas jogavam contribuições para a Igreja nas escadarias. Assim, os visitantes tinham que pular as moedas para não pisá-las. O caminho do jogo da Amarelinha – entre o Inferno e o Céu – tem um óbvio significado religioso: a a velha luta entre o Bem e o Mal. O nome vem do francês Marelle, que por adaptação popular ganhou a associação com amarelo e o sufixo diminutivo. Em Portugal, chama-se jogo da macaca ou pé-coxinho; em Moçambique, Avião ou Neca; na Espanha, Quadrillo, Infernáculo, Rainha Mora ou Pata Coja; no Chile, rayuela... e por aí vai.
O jogo consiste em pular sobre um desenho riscado com giz no chão, que também pode ter inúmeras variações. Em uma delas, o desenho apresenta quadrados ou retângulos numerados de 1 a 10 e no topo o céu, em formato oval. Tira-se na sorte quem vai começar. Cada jogador, joga uma pedrinha, inicialmente na casa de número 1, devendo acertá-la em seus limites. Em seguida pula, em um pé só nas casas isoladas e com os dois nas casas duplas, evitando a que contém a pedrinha.
Chegando ao céu, pisa-se com os dois pés e retorna-se pulando da mesma forma até as casas 2-3, de onde o jogador precisa apanhar a pedrinha do chão, sem perder o equilíbrio, e pular de volta ao ponto de partida. Não cometendo erros, joga a pedrinha na casa 2 e sucessivas, repetindo todo processo. Se perder o equilíbrio, colocando a mão no chão ou pisando fora dos limites das casas, o jogador passa a vez para o próximo, retornando a jogar do ponto em que errou ao chegar a sua vez novamente. Ganha o jogo quem primeiro alcançar o céu.
Em uma outra versão, mais complexa, o jogo não termina aí. Quem consegue chegar ao céu, vira-se de costas e atira a pedrinha de lá. Esta é a versão que eu, minhas primas e amigas jogávamos. A casa onde ela cair passa a ser sua e lá é escrito o seu nome (caso não acerte nenhuma, passa a vez ao próximo jogador). Nestas casas com "proprietário", nenhum outro jogador pode pisar, apenas o dono, que pode pisar inclusive com os dois pés. Nesta versão, ganha o jogo quem conseguir ser dono da maioria das casas.
O tempo passou e a minha vida e a do Brasil tem sido um jogo da Amarelinha sem fim. Muitas vezes, a realidade mostra que perder e estar no Inferno é melhor do que ganhar o Céu. O inferno nos nega qualquer esperança e já sabemos disso ao atravessarmos seus umbrais. Nas poucas vezes que alcançamos o céu, vivenciamos encenações que são verdadeiras traições ao que sonhamos para nós e nosso país durante décadas.

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