segunda-feira, maio 01, 2017

Pezinhos de lã

Éramos proibidos de escutar as conversas dos mais velhos. As em voz alta ou à meia voz pelos cantos da casa, nas penumbras dos quartos. Queixas, lamúrias e risinhos também. Gargalhadas. Ruídos indecifráveis aos nossos ouvidos de crianças abelhudas. 

Bem que tentávamos ser invisíveis,  passar despercebidos. Era um tal de prender a respiração, de andar nas ponta dos pés, de nos esconder atrás das portas.  De fingir dormir embaixo de mesas, escrivaninhas, esparramados em tapetes.  Mas sempre acabávamos expulsos do paraíso, mesmo sem termos mordido a maçã. 

Tentávamos adivinhar segredos de cofres disfarçados de quadros nas paredes, dos vidros de doces e latas de biscoitos, no alto de armários inalcançáveis.  E se, por acaso, éramos surpreendidos na tentativa inútil de escalá-los, apresentávamos-no o catecismo, aberto na página do grande olho de Deus, dentro de um triângulo, vendo tudo para nos castigar sem piedade. O Juízo Final parecia-nos ser sempre amanhã.

Muitas foram as vezes, que acordamos pensando que alguém morria no quarto ao lado. As explicações eram sempre as que tínhamos pesadelos, de tantas molecagens à luz do dia. Encontrávamos sempre os que pareciam morrer à noite, entre gritos abafados e gemidos,  lépidos e fagueiros, na manhã seguinte, à mesa do café já posta.

Quando jovens, somos nós que não queremos papos com os mais velhos. Não temos paciência para as boas histórias que nos querem contar, nem para queixas e saudades que não entendemos. Adultos, formamos nossas próprias famílias e os mais velhos estão ali apenas compondo cenários indispensáveis de aniversários e natais que se sucedem cada vez mais rápidos.

Aí, amadurecemos. Começamos a envelhecer e passamos a buscar explicações para o que apenas presumimos durante nossa infância, adolescência e juventude.  Queremos outros pontos de vista sobre o que foi a nossa vida e a dos que nos antecederam.

Perguntas e mais perguntas acendem-se velozes, mas quando as pronunciamos só ouvimos nosso próprio eco. Nossos avós, pais, tios, primos mais velhos já nos disseram o definitivo adeus. Se vivos, estão tão fragilizados que evitamos tocar em cicatrizes, em  feridas mal curadas pelo tempo. 

E assim, começamos a pesquisar o que somos no que  achamos ter sido. Procuramos  luzes que sosseguem nossa alma, em fotos, cartas antigas, cadernos escolares, cavucando e peneirando lembranças.  E neste exercício, regados em sangue, suor e lágrimas,  lentamente vamos construindo  mosaicos, mesmo incompletos, desbotados, do que fomos. 

Já somos, então, capazes de compaixão. Podemos também tentar entender o que aconteceu  aos que viveram próximos de nós, em segundo plano, quando estávamos muito preocupados em fazer carreira, em manter ou acabar casamentos, em criar os filhos, em conhecer aquele  país e também aquele outro.

E, de repente, apenas um pedacinho, o menor de todos, de cor mutante, indefinida, é capaz de jogar a luz misericordiosa sobre tudo. Não precisamos entender nada. Vivemos. Entramos em cena aos trancos e barrancos, aos berros pela dor de ter que respirar. Mas podemos dela sair sem perturbar a platéia, com a leveza dos nossos pezinhos de meninos, pezinhos de lã. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário