sexta-feira, maio 05, 2017

"Eu amo a lua do lado que nunca vi"

Coisa linda, em Lisboa, é o elevador da Glória. Liga a Praça dos Restauradores, na cidade baixa, ao Miradouro São Pedro Alcântara, no Bairro Alto. São 265 metros de ladeira sinuosa que pode, sim, ser percorrida a pé. Melhor na descida, é claro, que todo santo ajuda. O tíquete, de 3,6 euros, bem carinho,  é  de mão dupla. Mas apenas visitantes, turistas, pagam por ele. Para os lisboetas é bem mais barato ou mesmo free. 
São muitos os caminhos que nos levam à Baixa Pombalina (assim chamada em honra ao reconstrutor de Lisboa, após terremoto de 1755, o Marquês de Pombal), até as partes mais altas da cidade, a pé, de bonde, ônibus ou carros. Seja pros lados do Chiado, do Bairro Alto, do Jardim do Príncipe ou para o lado oposto, que é o da Sé, da Alfama, do Castelo de São Jorge. Todos caminhos queridos, mas o do bondinho da Glória, para mim, é o mais querido de todos. Justamente porque se esconde. Da última vez em Lisboa, fiz  diferente. Fiz a pé o caminho do bondinho. E é claro escolhi descer a ladeira.  Sempre tenho dentro de mim aquela música do Gonzaga Pai que diz:

Vai oiando coisa a grané
Coisas qui, pra mode vê
O cristão tem que andá a pé


E fui vendo muitos muros interessantemente grafitados.  No início da descida da ladeira, ainda na escadaria, logo me deparo com um tigre assustador que parece querer arrancar o coração de uma frágil mocinha e, ao mesmo tempo acariciá-la. E ela está ali numa pose de toque-não-me-toque. Se as mulheres são incompreensíveis, imaginem os tigres!
Desço um pouco mais a ladeira e já estou no Largo da Oliveirinha. Procuro-a, não acho. Há algumas árvores altas, mas nenhuma sequer parente de oliveiras. O largo homenageia a oliveira que já não é, que  lá não mais está. E, no Largo da Oliveirinha , bela homenagem ao artista plástico e poeta/escritor português, nascido em São Tomé e Príncipe , José Almada Negreiros.  O poeta está retratado com seus colegas de ofício e muitos de seus versos. 
Descubro que pelas bandas do Largo da Oliveirinha, virando-se à esquerda, muitas outras  paredes grafitadas. Marcam edifícios abandonados, uns já em processo de restauro.  E junto aos desenhos, versos do poeta: "Eu amo o lado da lua que nunca vi".
 E também este outro:"Se eu fosse cego amava toda a gente." Mais: "Não é por ti que dormes em meus braços que eu sinto amor." E ainda este:" Tu, meu amor, que nome é o teu?/ Dize onde vives, dize onde móras, dize se vives ou se já nasceste." 

Passado o Largo da Oliveirinha, as casas fazem fundo com o Jardim Botânico que tem a entrada, bem mais para cima, perto do Jardim Príncipe Real. Que delícia abrir a janela e ver o belo arvoredo do Jardim Botânico! Viro-me, de novo, em direção à ladeira, por onde o bondinho da Glória corre, e me aparece grafitado um lindo leão. Dedico-me algum tempo a contemplar a fera,  assim meio entorpecida, meio enlevada, meio travada.
Feras sempre me rondam e ameaçam arrancar-me o coração de vez. Claro que com minha permissão, incauta que sou. Se não tenho talento, coragem e nem vocação para domadora, por que me arrisco tanto? Este leão tem uma cauda muito, muito comprida. Na verdade uma cobra. Dois monarcas das respectivas espécies, conhecidos pela falta de compaixão.  
Deparo-me, pouco antes de alcançar a linda Praça dos Restauradores, com a placa indicando a Travessa do Fala Só. Os nomes de ruas e travessas de Lisboa, carregadas de história, de significados, merecem capítulo à parte. Na Travessa do Fala Só/ Vive uma alma solitária/que vendeu o futuro/por uma promessa imaginária.
Que pena, minha caminhada ladeira abaixo está a se encerrar. E lá vem o gêmeo do bondinho, no momento vindo do Miradouro São Pedro Alcântara e a fila de felizes passageiros. Em algum momento os gêmeos se encontram e até param para um dedo de prosa dos motorneiros ou troca de informações rápidas e necessárias aos bons serviços que prestam.




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