Facilidades normais de qualquer cidade que se preza chegam também àquele canto de Taguatinga. A cidade já não se acaba no Mercado Norte. Luz elétrica nas ruas e nas casas, água encanada à vontade. Dois grandes abacateiros sepultam a lembrança do antigo barraco. Dele nem um prego fora guardado.
A casa está pronta por dentro. Por fora é outra história. Tem móveis novos na sala: sofás, mesinha de centro e uma TV para as novelas e o Jornal Nacional. É 1970. As novelas já são transmitidas direto do Rio e São Paulo. Não chegam mais de avião em rolos de videos tapes para serem exibidas com dias de atraso. O homem já chegou à lua. A avó viu e nem acreditou. A foto tremida dos primeiros passos do astronauta foi capa da Veja.
No quarto das meninas, duas camas bonitas com colchas de crochê, um criado no meio delas, uma mesinha de estudo e um pequeno guarda-roupa com espelho. O pai e a mãe não dormem mais em estrado. Agora têm cama de cabeceira com criado ao lado. Uma cômoda de madeira clarinha guarda lençóis e cobertas. Tudo combinando. Os meninos continuam dormindo cobertos por velhas colchas de retalhos:
- Este aqui é daquele meu vestido vermelho; este aqui foi o que sobrou daquela saia de veludo da Marta; este outro do casaco da Rita... E este? Não, não sei de onde veio. A avó, artesã de tantas colchas, deve deve ter catado aqui e ali dos quartos de costuras de pessoas amigas.
Uma enorme geladeira vermelha enfeita a copa. Encomenda da mãe a um marceneiro, uma mesa retangular, estilo mineiro, de madeira maciça, ocupa o resto do espaço. A cozinha é moderna e contígua à copa. Pode-se lavar louça com vistas pro quintal. A pia, outro sonho da mãe, não dá para uma parede morta, mas para uma janela.O pai faz da garagem seu atelier de pintura. De manhã, ali a luz é muito boa.
A casa está perto de pronta, depois de anos de se faltar quase tudo, menos comida: roupas melhorzinhas e distração para os meninos; vida de só estudos para as meninas. O pai vendeu todas as férias possíveis.A mãe tem uma clientela de professoras primárias para seus produtos de beleza e bijuterias.
Da janela da sala,a mãe vê os seus meninos sujinhos, brincando com outros ainda mais sujinhos da vizinhança, na rua sem calçamento. Um poeirão de fazer dó na seca. Um lamaçal sem fim nas chuvas. A mãe espera apreensiva as meninas chegarem de noite , cansadas, sem o jantar, do cursinho de inglês , do pré-vestibular, dos trabalhos de equipe com coleguinhas que moram no centro. Suspira! Não dá mais pra viverem ali!
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