A pequena família tinha encantamentos por ali. Uma vitrola novinha, discos muitos, quase todos de tenores italianos, móveis bonitos de sala e quartos. O pai viajava muito a trabalho e quando viajava era sossego certo. Trança-trança para a casa de parentes, almoços na casa de um, café da tarde na casa de outro e o jantar sempre na casa da avó.
Nas pausas entre as andanças, a menina e a irmãzinha brincavam com primos e vizinhos. A mãe e tias tricotavam, bordavam, crochetavam, passavam roupa, que lavadeira tinham, e faziam almoço, jantar e quitandas deliciosas no forno do fogão à lenha.
Depois da novela Caminho de Lágrimas, no grande rádio que imperava em cima da cômoda na sala da avó, mãe e tias agasalhavam as crianças e tomavam o rumo de casa. A festa toda acabava quando o pai da menina chegava de viagem. Mesmo assim, a família não achava alto o preço que todos pagavam para ter sua presença cantante e assobiante em casa.
De tão ciumento, o primeiro dia do retorno era só de indagações: quantas vezes a mãe tinha saído de casa, com quem havia conversado na rua, se tinha saído até o comércio da Rua 13, se havia ido ao cinema, ao cemitério, ao mercado.
Exceto visitas a alguns parentes bem próximos, todas as demais estavam proibidas ter-mi-nan-te- men-te, como se pecados mortais fossem. Ai se alguém contasse ao pai que havia visto a mulher sozinha ou mesmo com as crianças, amigas ou parentes neste ou naquele lugar. As portas dos infernos se abriam. O caos se instalava durante dias na pequena casa. Depois tudo serenava a ponto de haver rios de lágrimas quando ele viajava outra vez.
A mãe aguentava a primeira hora de interrogatório numa boa. Mas quando as perguntas se repetiam, ia ficando nervosa até ser tomada pelo desespero, posta contra a parede por conta de algum detalhe não revelado na primeira versão. E as meninas, ali torcendo nervosas as mãozinhas. Eram dois mimos de crianças, mãos rechonchudas e pequeninas com aquelas covinhas no começo dos dedinhos e finas pulseirinhas de ouro marcando os pulsos roliços.
O certo é que o pai não queria aquela vida feliz e infeliz que tinham. Queria sair daquela cidade pequena que expunha a vida de todos numa vitrine para o bem ou para o mal. Queria estudar Belas Artes. Queria morar em cidade grande, andar anônimo pelas ruas. Não ter que cumprimentar pessoas desde o momento que punha os pés pra fora de casa. Não queria mais viajar, dormir sozinho em hotéis e passar a maioria dos dias de cada mês distante de seus amores. Queria outra vida. E tivemos.
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