O poeta Carlos Drummond revelou, certa vez, que usava dentadura dupla. E que as usava, pelo visto, muito antes da meia idade. Disse, numa crônica, publicada em revista, que as tirava para brincar com filha Julieta quando criança. Despudoramente, expôs sua banguelice completa, em um tempo sem mídias sociais. Também expôs em sucessivas entrevistas, o tamanho da mágoa que lhe causou a interrupção de sua conversa semanal com os leitores do Jornal do Brasil. Foi assim: alguém lhe telefonou e disse que o office-boy não passaria mais para recolher a crônica. Sem mais explicações.
Peço licença para refazer parte do parágrafo anterior. Leio o que acabo de escrever com o amigo que me faz, no momento, visita atrasada de Natal. O amigo me corrige: quem expôs publicamente a banguelice dupla de Drummond foi a filha Julieta, que escrevia para a Veja. Drummond era reservado, diz ele. Tão reservado - retruco - como pode ser alguém que passeava pelo Rio de Janeiro com a amante, à luz do dia. Sem contar os poemas eróticos que fez em homenagem a essa mulher fogosa.
O escritor Ciro dos Anjos gostava de contar causos durante as aulas de Oficina Literária, no Departamento de Letras da Universidade de Brasília. Contava, com inveja assumida, que iam ao Rio de Janeiro mulheres do Brasil inteiro e de além fronteiras conhecer Drummond. Uma delas, argentina se me lembro bem, chegou ao Ministério da Educação, e arrumou um jeito de ficar observando o poeta em sua escrivaninha de trabalho. Bem, a tal mulher, depois de alguns minutos de contato visual à certa distância e de admiração desmedida ao objeto de desejo, enfim revelado, desmancha-se em prantos: “Consegui sentir na minha própria alma toda a tristeza de Drummond”, soluçava devidamente amparada. Ciro contava a cena rindo porque a tristeza e a seriedade de Drummond era bastante apropriada à persona pública do poeta. Na vida privada, era bastante gaiato o que se comprova pelo episódio das dentaduras.
Ciro gostava de contar sobre as dificuldades de se ter como amantes mulheres que circulavam entre os intelectuais lá pelos idos dos anos 50. Eram mulheres finas que exigiam certos protocolos. Os causos do escritor eram quase sempre vividos, convenientemente, por terceiros. Dava-lhe mais liberdade para exercita-los. Depois de longos saraus com certa dama, um de seus amigos viu-se compelido a fazer-lhe a corte de forma mais direta. Ela polidamente recusou o affair com medo de dar o passo e comprometer convívio tão prazeiroso no campo das ideias e galanteios socialmente aceitos. Ele imediatamente a agradeceu: “Que alívio você ter me dispensado! Teria que comprar enxoval completo de amante!”. Naqueles tempos o enxoval previa além de pijamas, robe-de-chambre de seda. Os olhos da cara para poetas e escritores funcionários públicos.
Ciro trabalhou na campanha de Juscelino para governador de Minas. Fazia parte da equipe que acompanhava as andanças do candidato pelo interior. Como não ostentava importância pessoal, não era recebido nas cidades com as devidas considerações. Juscelino hospedava-se muitas vezes em casas de correligionários. Claro que na do mais importante da biboca. As demais acomodações eram distribuídas aos seus assessores conforme a importância que os anfitriões atribuíam a cada um. Certa vez, coube a Ciro dormir encolhido numa caminha de criança toda molhada.
Ciro confundia-se com seu personagem de O amanuense Belmiro, o registrador do cotidiano. Participou da caminhada de uma das maiores personalidades políticas rumo à Presidência da República. Mas ao contar a história, sublinhou a aparente insignificância de não ter sido visto como alguém que merecesse uma boa noite de sono. Ciro sempre é lembrado como integrante da geração de Drummond. Ou seja, uma estrela de brilho menor que a do poeta que dá nome ao grupo, mesmo não havendo comparações possíveis entre os legados que deixaram.
Esta crônica é minha pequena homenagem a esse escritor, jornalista, professor, advogado, cronista, romancista, ensaísta e memorialista brasileiro. Nasceu em outubro de 1906, em Montes Claros, Minas Gerais, para morrer, em 1994, no Rio de Janeiro, carioca de coração como tantos mineiros. Aprendi com ele a não ter medo de confundir minhas histórias com a dos outros, de embaralhar passado presente e futuro, o que ainda acontecerá com o que já aconteceu. As palavras nos dão o eterno de presente.
Texto publicado em 28/12/2015, no Blog do Matheus Leitão
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