Os jornais de São Paulo desembarcam, em Ouro Fino, desde o início do século passado, todos os dias, antes do almoço. Menos quando o trem descarrilha. Ou fica parado perto de alguma fazenda por ter atropelado um boi ou cavalo. São muitas e muitas as baldeações antes do destino final. Quase sempre com esperas. Os homens viajam de terno, gravata e chapéu. As mulheres, de vestidos novos e uma troca na bagagem de mão, para a chegada com o devido aprumo.
Nos anos 70, os trens morreram. Nos 80, arrancaram os trilhos que colocaram a cidade no mapa do Brasil. Depois, um forasteiro comprou o Hotel Sá, que era belo e se acabou. Foi demolido. O proprietário, ninguém sabe quem é, fez um muro triste em volta de todo o terreno que dá pra praça da estação. No jardinzinho da praça, não mais o farfalhar das saias das moças namoradeiras.
Houve um tempo que horários de casamentos eram marcados conforme o trem que se pegaria para a lua de mel. Casava-se de manhã, a tempo da família oferecer almoço aos convidados e os noivos embarcarem no início da tarde, para Guaxupé ou Belo Horizonte, Poço de Caldas, São Paulo, Rio de Janeiro,
Trens trazem encomendas em mãos: vestidos de noivas, de primeira comunhão, de bailes. Trazem as visitas de sempre e moços sem eira nem beira, perfumados e elegantes, prontos para golpes do baú. Filhas prendadas de fazendeiros ricos eram “arroz de festa” até que arranjassem marido. Ninguém queria filha solteirona, mesmo que o casamento fosse com um traste, desde que bem embalado, educado, que fizesse figura.
Todos sabem de cor e salteado os horários de chegadas e partidas. Assim não se fica preso de um lado ou do outro da cidade quando aquela serpente sem fim de vagões de passageiros e de cargas chegava depois de ranger e silvar por horas e horas entre montanhas, vales e planícies.
O guarda-chaves é o homem mais poderoso do mundo. Capaz de mudar o rumo de vários trens, ao mesmo tempo, apenas com um apito e giros certeiros de manivela. É mais forte que os cowboys das matinês de domingo. Mais forte que negros lenhadores. Mais forte que levantadores e carregadores de sacos de café, formigas enormes descamisadas enchendo dezenas de vagões com destino ao porto de Santos.
Os trens sempre apitam no último quilômetro antes da curva que antecede a entrada da cidade. É o aviso para que as linhas férreas fiquem livres de pessoas e animais. A menina corre descalça com os primos até à estação. Uma gritaria só. O trem já vai embora e o tio aparece na plataforma com a mala de novidades. Pente que não se parte. Pode juntar uma ponta na outra que ele volta a ser o pente de antes, inteiro. Radinho portátil. De pilha. Quem poderia imaginar! Agora se pode acompanhar a novela dentro de um trem, do ônibus!
Na mala do tio, tecidos que não amassam. Só lavar e secar. Senta, levanta e nenhuma ruga.
- Não troco pela minha calça de brim que quanto mais lava, mais macia e bonita fica por essa daí.
- É bom se acostumar! Tem gente que ainda tem fogão a gás só de enfeite. Quero ver quando ninguém mais vender lenha. Vão queimar portas, janelas, móveis velhos?
- No fogão a gás a comida esfria rápido, cozinha depressa. Não tem o mesmo gosto.
- Não compro café em pacote. Imagine! Café tem que ser torrado e moído em casa. Não deixo passar do ponto. O cheiro avisa quando é para tirar do fogo. Meu torrador foi presente de casamento. Chegou junto com o moedor. Café só moído na hora, enquanto a água ferve. Duas moegas, no máximo. Sem desperdício. O cheiro toma conta da casa. Aquela ali quase teve um troço. Torrou café quente de mais e foi direto para o tanque lavar roupa na água fria. Não sei como não ficou toda torta! Depois de ficar no calorão, friagem é veneno.
- Vocês ficam aí nessa conversa boba. Pois eu te digo, em São Paulo tem lugares que ninguém mais atende quem faz compra. Com um carrinho pega-se o que quer nas prateleiras e paga na saída.
- Nossa! E dá certo? Aqui isso não vai funcionar não, duvido!
- Pois vão se preparando que comprar no armazém, no picadinho, sem atendente pra pesar duzentos gramas disso, cem gramas daquilo. Tudo pesado e cortado na hora mais dois dedos de prosa, isso vai acabar. Vai mesmo!
Depois da geladeira, chegou no vizinho, de ônibus, uma televisão!
- Também pudera! Trabalha no Banco do Brasil, Veio de São Paulo. Tem dinheiro para esses luxos.Televisão é como ter um cinema em casa, dentro de uma caixa. Até parece que vocês nunca viram em filmes! Estão colocando uma antena lá em cima daquele morro mais alto. Vai servir para toda a cidade.E se chove? Sei não! Capaz de não pegar.
Publicado em 21/12/2015, no Blog do Matheus Leitão (G1)
Publicado em 21/12/2015, no Blog do Matheus Leitão (G1)
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