terça-feira, dezembro 15, 2015

Rascunho de cidade, tatuagem na alma

O voo Miami/Brasília demora menos de duas horas pra chegar ao fim. Um dos comissários avisa que o café da manhã será servido. Não importa de onde eu venha, nem a quantidade de anos passados, sempre chego à Brasília pela primeira vez. Sempre chego numa rodoviária suja e molhada pelas chuvas de janeiro. De um lado, a Esplanada dos Ministérios com o esqueleto da catedral logo no começo. Do outro, a base de concreto do que seria a Torre de TV. 
Esse rascunho de cidade recém inaugurada é tatuagem na minha alma. Não se apaga como não se apaga o rosto estranho e distante da minha mãe ao receber-me. Um fosso havia se aberto entre nós em apenas seis meses, desde que deixamos Arapongas, no Paraná, numa noite fria e deserta. Depois da temporada forçada em Ouro Fino, com meus tios e avós, eu não queria voltar para casa porque simplesmente ela não mais existia. Quando abracei minha mãe,  não  a reconheci pela voz. Só ouvia as sílabas finais do que me dizia, carregadas de vento e umidade. Tudo reverberava pelas fachadas dos prédios da 413 sul.
Histórias misturam-se em um redemoinho de folhas, risadas, choros e ranger de dentes. Leva pra longe o berço da minha infância, a vitrola do meu pai e todos os discos em 78 rotações que colecionou. A venda da vitrola, que teve festa quando foi comprada, ajudou na  mudança de 1954. Nosso primeiro endereço mais longe de Ouro Fino foi Vila Prudente, São Paulo, de casas com quintais sombreados e famílias vindas da Lituânia, da Prússia e Japão; de esgotos a céu aberto e gente saindo de madrugada a pé para o  trabalho, carregando marmitas em embornais. 
Por mais que eu me estique, deitada no colo da minha mãe, nas viagens de ônibus ou de bonde ao centro da cidade grande, não consigo ver os últimos andares dos arranhas céus.  Subir e descer de elevadores, daqueles com portas de grades e condutores, minha primeira grande aventura de criança. Outra, andar pela cidade de mãos dadas com meu pai, sem destino.
 No dia de agosto que Getúlio se matou, todas os rádios do comércio  amplificavam a leitura repetida da carta-testamento que deixou. Caminhamos a esmo, sempre ouvindo diferentes locutores numa leitura contínua. Fora Getúlio mesmo que escrevera? Não importa. Fico sabendo para sempre o que são aves de rapina. Do corvo, pássaro de mau agouro que não canta. Ave disfarce dos anunciadores da morte, dos que trazem a  má sorte a um  país inteiro. O corvo pode ser um Judas que nunca se arrepende, não se enforca, um carreirista da traição.
"Quando você crescer, tenho certeza, vai se lembrar dessas pessoas chorando nas ruas. Você já tem quatro anos e eu me lembro de coisas que me aconteceram quando  tinha nem três. Vai se lembrar que, no dia que Getúlio morreu,  andamos pela Rua Direita, pela Álvares Penteado - aqui meu avô comprou a primeira casa quando chegou da Itália - , pela Praça da Sé, pelo Viaduto do Chá. Você vai se lembrar disso, tenho certeza." E meu pai repetiu tanto, nos anos seguintes, a história dessa nossas caminhadas, às escondidas de minha mãe, que, de fato, foi impossível esquece-las. 
Dez anos depois, nossa família cigana já havia deixado São Paulo, passado pelo norte do Paraná, retornado ao sul de Minas e fincado o pé, desta vez, pro resto da vida dos meus pais, em Brasília.  Na virada de 31 de março para 1º de abril, eu e meu pai estávamos, apenas os dois, na sala, enquanto a casa dormia. O rádio sintonizado na Rádio Nacional que comandava a Cadeia da Legalidade. Emissão interrompida, meu pai não espera o comunicado dos vencedores. Vira-se para mim e diz: “Acabou”. Sem trocar de roupa, sem tomar banho, depois de horas e horas de vigília, entorna um golinho de café, boca de pito. Acende o último cigarro do maço amarrotado e cai derrotado no sofá.
Publicado no Blog do Matheus Leitão (G1), em 14/12/2015 

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