Na TV do avião, uma gazela, um veadinho saltitante. Um cervo galhudo. Traseiro roliço, ondeante. No lago, um cisne, narciso embriagado com a multiplicação infinita do espelho. Gavião. Ninho enorme de gravetos bem no cocuruto da árvore. Montanhas nevadas. Wonderfull world! Pularam a parte que a gazela é comida pelo urso, pelo tigre. Sei lá qual o feroz carnívoro do topo dessa cadeia alimentar. A parte que a mãe do Bambi cai no precipício. A que o cisne branco é atingido por disparos a esmo feitos por espíritos de porco em andanças pela floresta encantada. A do gavião à espreita assassina de qualquer carne que se mexa camuflada de folha. A da mulher encontrada morta, nua e estuprada, à beira da estrada.
O rapaz da poltrona da frente olha pela janela e comenta com o passageiro do lado o descuido com que as bagagens são chuchadas na barriga do avião. O que viaja perto de mim, no meio, guarda o celular no bolso do casaco sem desliga-lo. O gorducho da ponta se esqueceu de endireitar a poltrona. O comissário chama-lhe a atenção. Descolamos da pista entre silhuetas de palmeiras negras contra a luz do sol que morre. Olha lá a estrada e tanta água em volta
Alguém diz que passear em Orlando é bom, mas que Vegas é imperdível. Como, indago aos meus botões, se só Elvis não morreu? Frank Sinatra não canta mais lá. Nem Dean Martin. Muito menos Sammy Davis Jr. Vegas é agora o piano de um milhão de dólares de Elton Yamaha John. É Celina Dion com o marido jogador compulsivo a tiracolo.
A amiga que me deixou no aeroporto já deve ter chegado em casa. Foram três semanas de muito café e conversa. Na TV a bordo, agora, avisos sobre segurança de voo. Pelo que me consta ninguém foi encontrado vivo, no oceano, amarrado ao assento flutuante. Fecho os olhos. Pela manhã, o ciclone nascido no Caribe foi elevado à categoria de furação ao chegar à Jamaica, onde Júlia e a irmã mais velha, Anita, levadas pelos avós americanos, passavam férias, quando crianças.
- Como é a Jamaica, Júlia?
- Que nem Taguatinga, mas com mar.
Taguatinga, a maior cidade do Distrito Federal é feita de casa de quintais cimentados, de ruas comerciais poluídas de letreiros enormes. De asfalto sem bocas de lobo. Qualquer chuvinha faz das ruas rios perigosos. Na década de 60, tempestades de vento e poeira deixavam tudo vermelho de fazer dó. Mas havia jardins e árvores nos quintais e em frente as casas da avenida principal. As escolas não eram muradas, prisões.
Havia as chácaras dos japoneses, logo depois do centro para se passear, colher flores e comer frutas de graça. Ruas e prédios altos, mal acabados, tomaram conta de tudo. Havia o Cine Paranoá com um saguão glorioso e cartazes enormes anunciando os filmes do mês. E, no mesmo prédio, atrás, o Apache para o sorvete do domingo.
Chegava-se à Taguatinga por uma estrada sombreada de eucaliptos perfumados. E, pelas janelas abertas dos ônibus, o vento trazia notícia de caminhões estacionados para a venda de abacaxis dourados e maçãs do paraíso em papel de seda roxo. A via expressa acabou com sombras, cheiros e poesia.
Publicado no Blog do Matheus Leitão (G1), em 04/12/2015
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