Do ponto, nas montanhas, onde Andrea, na direção da caminhonete, me mostrou a indicação para as estações de esqui, teríamos que ultrapassar, vindas de Santiago, exatamente 45 curvas muito fechadas e devidamente numeradas. A estrada é estreita, de mão dupla e sem qualquer proteção nas encostas. Minha amiga dirige como se estivesse na reta do Eixão de Brasília. Nessa hora, acredito em Deus, em anjos e arcanjos, me agarro aos santos, encomendo minha alma e, assim protegida, resolvo apreciar a paisagem que se descortina.
Nessas pirambeiras que antecedem o Andes ainda mais alto e profundo, há "fazendas" sempre geladas. Vacas e cavalos passam o tempo em cima de pedras enormes, em poses altivas, olhos fixos no horizonte. Me lembram monges tibetanos em meditação, naqueles terraços encravados nas alturas. Andrea me diz que as vacas e os cavalos estão dormindo. Assim mesmo, à beira dos precipícios. Noto que se dormem, dormem de olhos bem abertos. Se piscarem, imagino,perdem o equilíbrio e despencam ladeira abaixo. Mas não há, parece,perigo disso acontecer. Esses bichos andinos devem se alimentar de alguma ração especial que lhes dá este ar de curtindo um barato. Mas, é o ar rarefeito das montanhas mesmo.Já posso sentir essa sensação. E estamos apenas na trigésima curva. E ainda faltam outras 15 para chegarmos a Farellones.
O sol de primavera quase verão derrete a neve andina que escorre por caminhos de pedras, água grossa, leitosa, da cor de chocolate. A neve derretida pelo sol vira lama rala. Gostaria de dizer que a água que escorre das montanhas e engrossa o Mapocho é bem branca, branquinha que nem leite ou quase anil, azulada, transparente como a vemos quando ainda neve, nos dias claros. Mas não é bem assim. Ela escorre barrenta pelos detritos naturais que arrasta e é essa a cor do Mapocho quando passa por Santiago a caminho do mar.
A água dos rios, lagos e mares virou nuvem, virou chuva, virou neve e cobriu as montanhas. Aquecida pelo sol, dá vida ao Mapocho que, como o São Francisco, o Riacho do Navio, o Tejo ou o riacho de qualquer aldeia, corre para o mar e vira nuvem novamente. Vencidas as 45 curvas, estamos em Farallones, um pueblo encravado onde a montanha é mais suave. São muitas casas, chalés particulares e os refúgios, instalações simples como muitas de nossas pousadas. Uma lhama gigante enfeita, imóvel, a entrada de uma das casas. Me aproximo, ela pisca para mim.
Perto do pueblo, estão La Parva (acima) e Colorado (abaixo) com seus grandes edifícios de apartamentos e hotéis. É quase verão, os teleféricos, que levam esquiadores aos diversos estágios das montanhas, estão fechados. Mas aqui, onde estamos, há muita neve ainda. Mais adiante, fileiras de montanhas sucedem, cada vez mais altas, vestidas de neve eterna. Estou, parece-me,diante de um espelho do tamanho que meus olhos alcançam. O espelho projeta infinitos cumes cumes brancos, azulados, translúcidos, dourados pelo sol que já morre. Venta bastante, o frio aumenta. Estamos sem agasalhos apropriados. Afinal, "lá embaixo", Santiago é quente. Nossa aventura foi improvisada. É hora de voltar.
Descemos as 45 curvas, acompanhando a neve derretida a escorrer das escarpas, caminhos de pedra. A luz da hora mágica, que antecede o anoitecer, estende-se por montanhas e vales. Encontramos novamente cavalos, vacas que ruminam quietude, à beira dos precipícios. Passamos pelas mesmas multidões de florezinhas amarelas, que agora se fecham para dormir, por cactos imóveis, silhuetas graves contra o fundo branco, verde e azul.
Estive mais perto do céu do que nunca. Lembro-me das montanhas de Minas e compreendo, no meu coração, porque tudo isso me emociona, me fascina. Nunca estive tão perto do céu! Nem em Minas, nem nos Alpes. Na verdade, estive no céu porque meu corpo mergulhou em nuvens e eu não estava dentro de um avião. Era eu, no meu corpo, que andava entre as nuvens andinas. Atravessei nuvens geladas e coloridas, feito boba, enquanto perambulava meio zonza por este pedacinho de cordilheira. Eu e minha amiga Andrea. Bem que procurei pelo voo de algum condor. Mas nenhum apareceu.
Publicado no Blog do Matheus Leitão (G1), em 30/11/2015
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