segunda-feira, novembro 02, 2015

Lisboa e a beleza que não morre







Nunca viajamos sós, mesmo desacompanhados. Sempre está conosco aquele alguém que ficou quando partimos ou que bateu asas e voou do nosso quintal, casa, abrigo, gaiola dourada. Viajamos para dentro e para fora, inspirados ou empurrados por paisagens, aromas, sabores, música ou ruídos. Viajamos no silêncio. E o silêncio fortalece a presença dos que amamos e se foram por decisão nossa, por fatalidade ou porque quiseram assim. 

O silêncio das igrejas pode ser aterrador. Sorte nossa que o ranger de portas de entrada ou laterais trazem, em seguida, o eco de saltos altos, o arrastar de sandálias cansadas. No início, hesitantes. Depois matracas absurdas, marcando a melodia dos sussurros, murmúrios, zumbidos, suspiros, preces em tons e semitons. 

Você não está aqui, mas posso ver com teus olhos a Pietà dessa Igreja de São Roque de Lisboa. Vejo-o negando com um balançar de cabeça esse altar em ouro para um filho de Deus quase nu, recém descido da cruz. Riquezas vindas de américas, ásias e áfricas envolvem a desolação desse momento ancestral. O filho de Deus que nasceu em estrebaria e foi aquecido pelo hálito de animais pede, implora, quer retornar à pobreza original.

Você me aponta os entalhes em mármores extintos e pedras lápis lazuli do altar e colunas que o emolduram. Mármores, pedras e metais amaciadas com sangue, lágrimas e suor escravo para o cinzel do artista. A Glória dos Céus, se existir, não é feita de ostentação, dizem-me seus olhos. Também me dizem que você crê em Redenção, não pelo ouro visível nem pelo sofrimento implícito, mas pela luz que certamente vigorou, um dia, no coração dos que deram forma à beleza que não morre.
Publicado  no Blog do Matheus Leitâo(G1),  em 02/11/2015

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