Igrejinha da Metropolitana |
Na quase metade da década de 60, aos domingos, era possível cruzar-se toda a extensão da W3 Sul, a então principal via comercial de Brasília, sem sequer outro veículo, em qualquer direção. A menina passeia com o tio ao volante da Rural Willis, Faz tanto tempo! A Rural Willis era verde, azulzinha, ou verde azulada? De lembrança, apenas a sensação de estar noutro mundo. Tudo claro demais, sol queimando demais, tudo seco demais. O comércio todo fechado e aquela rua triste. Resmunga qualquer coisa e o tio:
"Estamos num Planalto Central. Bem mais perto do céu." E, minutos depois: "Já vi muito caminhão grande atolado aqui nessa avenida, acredita?
Brasília havia sido inaugurada há apenas quatro anos e o tio falava desses tempos como se houvesse passado um século. Chegou ao Planalto Central em 1957. Engrossou o êxodo de Minas em direção ao Sul e ao Centro-Oeste. A maioria nem era tão pobre. Pobre que é pobre não tem dinheiro nem para migrar.
O tio reclama que o dia está abafado e pede à menina que abaixe também a janela do lado. Caipira que só, ela abre a porta. Dá uma desequilibrada e... consegue puxá-la de volta. Que susto! O tio olha a menina, sem acreditar, abobado com o acontecido. E os olhos dele eram da cor da Rural que dirigia lerdamente. Verdes? Azuis? Verdes azulados?
O pai da menina, por ciúme da irmã e por ser crítico demais, a beira do insuportável, implicava:
- A Lourdes casou-se com ele porque era bonito. Não tinha onde cair morto (como se ele próprio tivesse).
O tio e o irmão, órfãos de mãe, foram criados por um parente Monsenhor. O irmão fez faculdade. O tio passou a ajudar Monsenhor nos serviços da Igreja. Naquela época, tinha disso: destinos traçados pelos mais velhos. Casado, tentou de tudo no comércio. Nada deu certo. Passado alguns anos, filhos todos nascidos, o diploma da Escola de Comércio ajuda-o a conseguir emprego na Novacap, a empresa que construiu Brasília.
Passou, então, a ganhar o suficiente para ter um carro. Grande. Mas não abandonou a antiga mania de mexer com alguma coisa por fora, sem sucesso. No Acampamento da Metropolitana, que abrigou servidores mais abonados, no início da cidade, até fez uma granja no fundo do quintal. Sem mercado, as dúzias de ovos, postas diariamente, eram distribuídas pela vizinhança. A mulher era a paciência em pessoa, Nunca destratava-o, nem quando bebia um pouco demais, e as calças caíam abaixo da cintura e a fralda da camisa amassada espichava para um dos lados. Também nunca foram vistos litigando. No máximo, alguma queixa.
O tio gostava de conversar com a mãe da menina, em dias de almoço da família, o que acendia o ciúme do pai. E depois era aquela briga só da casa dos tios até o ponto de ônibus.
- Você estava lá toda prosa. Comigo em casa não é essa conversadeira...
- Você é um desmancha-prazer! Isso é o que você é! Não se pode ter um minuto de sossego que já vem com essas implicâncias. Que martírio! O que eu fiz para merecer tal castigo? Meu Deus do Céu!
Drama. E lá íam todos para o último ato daquele dia inútil.O tédio anunciava outra segunda-feira.
Publicado no Blog do Matheus Leitão (G1), em 07/11/2015
Maravilha de historia e texto .
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