sábado, setembro 26, 2015

Viagem a um mundo de delícias, parábolas, rezas e incensos





Vó Ina é a da esquerda, a da direita é minha tia-avó Ambrósia; as meninas são minhas primas Dáia e Marta; à esquerda,meu tio e padrinho Ângelo; à direita, meu pai; ao centro minha mãe, Elza, comigo ao colo.
Nunca ouvi a voz da minha tia-avó Ambrósia. Ela sempre foi para nós crianças, depois adolescentes e adultos, aquela presença branca-de-neve cada vez mais imobilizada e sem esperanças de um príncipe salvador, bem no meio do quarto de passar roupas e de costuras da casa da minha avó materna. Graças à tia Ambrósia e sua paralisia crescente, irreversível, a casa da minha avó era mais interessante que a Praça da Matriz de Ouro Fino, sul de Minas, com suas quermesses, fonte luminosa, casais de namorados aos beijos e abraços.
Tudo de bom acabava tendo por destino o quarto da tia Ambrósia. Tudo que ela não conseguia mais comer. As visitas sequer  haviam chegado ao beiral da porta da rua e nós crianças avançávamos em direção  aos presentes que deixavam: uvas transparentes de tão grandes e maduras, pedações de bolos de aniversário, de casamentos. Brigadeiros. Beijinhos de coco, puras tentações espetadas em cravos-da-Índia. Não havia noiva da família que, depois da cerimônia na igreja, antes mesmo da festa, não passasse para a benção silenciosa da tia Ambrósia. E não havia emoção mais linda para as meninas que eu, minha irmã e primas éramos, do que ganhar um beijo daqueles seres diáfanos envoltos em organzas, sedas, pérolas e tules.Nem anjos, em dias de maio, os de coroação de Nossa Senhora, eram tão lindos. 
Primos e primas oficializavam namoros e noivados perante os pais e em seguida homologavam os compromissos em visita à  tia-avó. E como era lindo vê-los, depois, subindo em direção à Igreja ou ao cinema da Rua 13 de  Maio, de mãos dadas, se namorados, ou ele com o braço nos ombros dela e ela enlaçando-o pela cintura, se noivos. Graças à tia Ambrósia, a casa da minha avó materna, era ecumênica. Por ali passavam padres, freiras, beatas, espiritas kardecistas, espíritas de terreiro e até gente protestante, que naqueles tempos ninguém era chamado de evangélico. 
Assim, nós crianças vivíamos entre terços, ladainhas e incensos, leituras do Velho e do Novo Testamento, de visitas misteriosas de um tal pai Jacó e de seu amigo pai João, de um caboclo velho e um índio bem jovem, que insistiam em baixar de surpresa entre os mais velhos. E quando isso acontecia, era um trança-trança em busca de charutos e cachaças das melhores porque, como sabemos, gente desencarnada é exigente. Ops! o post tá ficando grande, mas prometo voltar ao assunto. Sem tia Ambrósia, que viajou pro céu faz tempo, certamente nossa vida, em família, seria bem menos interessante. 

Publicado no Blog do Matheus Leitão (G1), em 25/09/2015

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