Quando cheguei, o portão estava trancado.
Pela janela, entreaberta pra rua, gritei: Ô de casa!
Não precisei esperar muito para que alguém abrisse a porta.
Lá estava ela, quase aos 93 anos, crochetando sem óculos.
Me reconheceu imediatamente: - Você por aqui? Que bom! Como estão todos em Brasília?
Continuou no trabalho de arrematar com ponto delicado a toalhinha branca, presente para a sobrinha-neta.
Nunca se casou, mas muito amou em vão.
Escuta bem pouco, mas enxerga muito bem, de longe ou perto.
Disse-me que tem tratamento de rainha: na hora do almoço, encontra o prato feito na mesa da cozinha com tudo que gosta. No meio da tarde, quase sempre banana com mel e aveia. À noitinha, um lanche leve.
Não se importa de andar de bengala. Quando o tempo está bom, arrisca um passeio pela calçada e critica quem, tão velho quanto ela, não usa bengala. Quem prefere andar se escorando pelas paredes da casa.
Todas as amigas,professoras aposentadas já morreram. Ela acabou de chegar de São Lourenço,onde mora a irmã um pouco mais nova. A mais velha morreu faz anos. Começa a lembrar como foi, mas muda de assunto. Triste demais.
De vez em quando, acompanhada do sobrinho vai ao mercado municipal. E morre de rir quando um dos verdureiros a saúda: Dona Lurdinha, a senhora por aqui. A senhora é eterna!
Lembra-se que, no dia seguinte, será aniversário do sobrinho mais velho; que, no sábado passado, foi o da minha prima Glória.
Ficou alegre com minha visita. Mas quando lhe pedi de lembrança uma toalhinha de crochê , mesmo que pequena, pequenininha, disse que não tinha.
Minha prima Ângela diz que ela não dá e nem vende, que o croché que faz tem destino certo: os sobrinhos filhos das irmãs. Não os sobrinhos tortos, como nós.
Tia Lurdes,tia Lurdes!
ResponderExcluirGostaria de vê-la, fazem anos que não sei dela!
Que bom ter uma Tia Lurdes e uma cidadezinha (das Minas Gerais) para visitar.
ResponderExcluirAproveito para perguntar se você não viu o "Noites de Cabíria"? Um perfeito filme de Fellini. Grande abraço
Querida Clara, como você consegue ver no simples o importante? Queira Deus que eu consiga essa sabedoria. Ao ler seu post, fiz um esforço hercúleo para também enxergar essa beleza que sua sensibilidade permite. Dei-me conta que as cachorras me faziam sala, pelo simples fato de que querem estar comigo. Minha mulher, na rede, dava-me um sorriso tão belo que me fez sentir o homem mais feliz do mundo. Minha filha, quando me chamou de PAI, mesmo que para pedir um pedaço daquele bife de picanha, realizou-me por completo. O que quero mais? Amigos como você. Obrigado.
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