Há um ano, 31 de março de 2019, comecei a divulgação, via Twitter e Facebook, do meu primeiro livro, Tempestade Tropical - Cadernos de Viagem - publicado, em São Paulo, Musa Editora. O lançamento presencial , marcado para 16 do mês seguinte, foi cancelado. Começava nosso calvário imposto pela pandemia do Coronavírus. Não tínhamos ideia de quanto mal nos faria em perdas de vidas queridas próximas ou distantes. Na verdade, tomamos também para nós a dor dos que chamamos outros. "Não perguntes por que os sinos dobram. Eles dobram por ti."
O medo e a dor não fizeram nossa vida parar. Não se tratava de uma guerra relâmpago, começamos a perceber. A impossibilidade do lançamento presencial reforçou-me a decisão de fazer meu livro chegar aos leitores. E chegaram às centenas. Os retornos que me animam a escrever outros livros, continuam.
Para celebrar o aniversário da chegada do livro a minha primeira leitora, aqui de Brasília, Leda Flora, publico a entrevista que dei a Vinicius de Melo Justo, mestre em Teoria Literária. Vinicius foi o primeiro a avaliar meu livro e a dar sugestões que deram esqueleto à carne as minhas palavras. Segue a entrevista.
Clara, obrigado por dividir conosco seus escritos. Uma das principais características de seu livro é a presença constante de uma voz reflexiva, se concentrando ao mesmo tempo no agora e no significado posterior da experiência. Como você constrói a interação entre passado, presente e futuro nos seus textos?
Nada nos acontece sem um pé no passado e outro no futuro. Somos seres caminhantes desde a concepção. Nem precisamos de movimentos, de itinerários físicos para viajar. Nossa imaginação é livre. Não está pregada apenas à dor ou à alegria presente. Escrevo sobre o que me aconteceu e sobre o que eu acho que me aconteceu. Até nas lembranças mais palpáveis tem muito só de sonho e delírio. Quando transportamos para a escrita o que achamos que é nossa vida, também estamos contando a história dos que nos antecederam, dos que conosco vivem e dos seres ainda possíveis. Presente, passado e futuro acontecem juntos. Estamos sempre vivendo o que somos, o que fomos e o que poderemos ser. Quando criança eu me imaginava adulta e também velha. Imaginava o mundo dos meus antepassados a partir do que me contavam e vivia também esse mundo deles. Quando brincamos de casinha, somos a mãe, o pai, o filho, a mulher e o marido. Damos vozes a todos os personagens em idades diferentes. Assim é a vida. Não houve um exercício racional de construção temporal. No que escrevo dou voz as pessoas que eu fui em idades diferentes e das pessoas conhecidas e desconhecidas que caminharam e caminham comigo desde Minas até alguns confins do mundo.
Outro ponto importante, especialmente na segunda parte, é a vivência como jornalista. Os textos são curtos como crônicas, mas em conjunto ganham estrutura de memorial, um tanto fragmentário. Essa história poderá ser contada por inteiro no futuro ou você considera mais interessantes os momentos específicos, como em “O fim se escreve no começo”?
Contar histórias por inteiro requer certo grau de pesquisa, de ordenamento que não tenho ao escrever.Não dá para se valer só de anotações. Não tenho disciplina suficiente para montar cenários completos de um período específico da história política e econômica do Brasil. Vou continuar com meus fragmentos. O que escrevo tem a ver com anotações que venho colecionando ao longo do meu tempode jornalismo, mais de quatro décadas, iluminadas pela minha emoção presente e passada. Deixo para o leitor a tarefa de montar um mosaico conforme o próprio interesse. Entendo que nunca escrevemossozinhos. Escrevemos com alguém ao nosso lado, o leitor. Me coloco muitas vezes no lugar dele. Há uma pessoa que escreve e outra que lê me habitando o tempo todo. A prática jornalística é assim. Ela se movimenta de acordo com o interesse do leitor. Ele nos pauta. De nada adianta trazer à tona o que ninguém quer saber. Mas podemos iluminar questões esquecidas, ou ainda não tratadas com o devido cuidado. Podemos contar do nosso jeito histórias que já vivemos como pessoas e como coletivo. Contar alguns segredos, a maioria de polichinelo. É esse jeito que dá diferencial, interesse ao que escrevemos.
Quais viagens você ainda não nos contou?
A que eu quero contar logo é a que fiz com amigos, no outono e inverno de 1985, pelos países do leste europeu. O muro de Berlim ainda não havia caído, mas grandes mudanças já se prenunciavam. Acho que tivemos sorte de testemunhar este fim de era socialista com toda a melancolia implícita. Também quero contar a história de uma paixão que é também uma viagem. Também está nos meus planos escrever sobre as viagens que fiz pela Sicília e Marrocos. Gosto mais de escrever algum trmpo depois que acontecem. Em tempo real faço apenas anotações e agora como temos disponível no celular uma máquina fotográfica também registro imagens que podem me ajudar nos relatos.
Por qual motivo os textos que relembram a infância, principalmente as três últimas partes, estão no fim do livro? Essa é uma das coisas que mais transforma a leitura em sequência, ver primeiro a Clara adulta e depois a menina.
Viagens de avião, principalmente as de longo percurso, fazrm a gente se tornar amigos de infância de desconhecidos ao nosso lado. Já me aconteceu de, em certos voos, acabar sabendo mais da vida um colega de trabalho do que durante anos de convivência. Estamos ali, naquele ambiente fechado, à mercê de uma série de fatores sobre os quais temos controle zero. Isso nos deixa vulneráveis. No começo do meu livro, estou embarcando de Orlando para Miami e depois Brasília. No final estou chegando ao meu destino, minha casa, Brasília, como dezenas de outras vezes. Neste voo fui uma boa companhia de viagem para mim mesma. Conversei longamente comigo. Conversei tanto que puxei da bolsa uma pequena caderneta e comecei anotar o que acontecia ao meu redor. E o que me acontecia começou a ser atropelado por lembranças recentes e distantes. Anotei também. Passei algumas semanas organizando essas anotações e as confrontando com vários textos já escritos. Alguns foram totalmente reescritos. outros parcialmente. No princípio estavam um caos como acontecem com as lembranças. Elas não entram na fila, em sequência. Elas acontecem sem pedir licença. Encaminhei este material todo a você Vinicius, mesmo sem conhecê-lo pessoalmente, apenas via Twitter, que me sugeriu colocar ao menos os textos sobre o Chile juntos, em sequência. Gostei e passei a costurar os textos que de alguma maneira se relacionavam. E neste exercício, aconteceram os capítulos do livro. Os textos de cada capítulos se relacionam. Os capítulos também acabaram se relacionando. O fio condutor de tudo é a viagem de avião que começou em Orlando.
Nesse sentido, como você vê a interação entre o seu passado e o nosso presente? Há pontos de contato entre a menina Clara e seu ambiente, a jornalista Clara e a nossa situação atual?
Não sei se seria muita pretensão minha, mas eu gostaria que meu livro, as minhas pequenas histórias, agrupadas em capítulos, fossem lidas e entendidas como uma saga de pessoas comuns. Penso que minhas histórias só terão valor se o leitor se projetar nelas; se de alguma forma puder vê-las, se não no todo, mas em parte, como a própria história ou de familiares. Minha família atravessou o Atlântico em busca de porto seguro, da terra prometida, empurrada pela pobreza e pela esperança de tudo melhorar. Depois, atravessou parte do Brasil. Uma busca milenar contada desde um dos mais antigos livros dos livros do mundo ocidental, a Bíblia. O pano de fundo das minhas histórias é o que acontece em casa, nas pequenas cidades onde moramos, em São Paulo capital. No Brasil e no mundo. Estão contadas de forma simples como se eu contasse um sonho, um delírio. Mas o leitor generoso, esta é a minha confiança ao publicá-las, certamente vai contribuir para valorizá-las porque dizem respeito ao que acontece ainda hoje.
Por fim, gostaria que falasse um pouco mais sobre como foi a experiência de escrever e guardar esses textos, enfim publicados. Tive a honra de lê-los antes da maioria, mas sinto que ainda há mais coisas escondidas nas suas gavetas...
Escrever para mim é uma obsessão. Escrevia antes de ter um lápis de verdade. Escrevia com um graveto na terra fofa ou molhada. Escrevia antes de saber juntar as letras. A obsessão veio do meu pai contabilista. Meu pai estava o tempo todo anotando, escrevendo. Esta era a vida dele, inclusive nos domingos e feriados quando aproveitava para colocar todo o trabalho em dia. Tinha uma letra linda que eu gostava de imitar. Sempre levemente tombada à direita. Então eu ficava ali perto dele, sempre; escrevendo também. Na verdade, com meus rabiscos. As histórias moram comigo desde sempre. Então eu lia antes de saber ler. Fazia uns garranchos e lia uma história para mim mesma a partir deles. Ou pegava um livro do meu avô e lia o que inventava no momento. Às vezes tinha a atenção dos adultos, mas nem sempre. Até por um certo comodismo, avalio hoje, optei pelo Jornalismo. Gosto de escrever, gosto de saber, então vou ser repórter de jornal para escrever todos os dias. Gosto de ficar emendando palavras em frases e parágrafos. Tem uma parte que parece, só parece, fácil do jornalismo que é o de relatar simplesmente o que acontece, onde e como acontece. Acho que sou boa nisso. Na escola, gostava mais quando a professora pedia descrições do que composições. Saber descrever pode parecer simples, mas nos ajuda a ser detalhista, a fotografar momentos. Descrever pode ser muito criativo também porque o que vemos acaba sempre nos levando ao que está escondido, ao que deveria estar ali e não está. Gosto deste exercício. Sim tenho muitas coisas engavetadas, meus poemas adolescentes (que deverão continuar assim). Muitas cadernetas com anotações de entrevistas feitas. Tenho um arquivo físico e mental de coisas que gostaria de contar. Não sei se terei tempo de vida para isso porque comecei a organizar tudo isso muito recentemente, só depois de deixar o jornalismo diário.
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